segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Q


Devagar, o Dia foi cantando suas sílabas. E Ele, sob o sol maior que já se ouviu, sem a menor pretensão composicional, vagabundeava, distantemente venturoso e malditamente perto, a passeio em algumas linhas melódicas.

Enquanto seguia sempre ao léu das vontades do seu coração – que ele tratava como criança doente, dando tudo o que ele lhe pedia - foi levando consigo as sílabas que Lhe soavam desafinadas do mundo daqueles todos, os Muitos: olhos abertos ou fechados, Seus acordes sempre continham as sílabas de riso e sonho, cantadas às vezes em falsete pelo Dia, cheirando a menosprezo, abandono e excrementos (melhor dizer merda de uma vez, e sentir o cheiro pelo ouvido!). Já as abundantes e luxuosas sílabas de pedra (que cheiravam aromas suntuosos, e caros) sobretudo as de ponta sussurradas no escuro que não fossem prece ou de amor, essas que formavam desses ruídos de estranha dissonância harmoniosa nesses hojes, preferidas pelos Muitos por serem mais palpáveis, mais evidentes, volumosas, corais incolores, podendo servir de arma potencialmente destruidora no que continham de degrau, e construtiva, no que cabiam de calar os Muitos e Poucos que estivessem perto, ou longe; estas últimas, com resignação, os ouvidos Dele deixavam passar, Ele sabia que elas logo encontrariam pouso ou gatilho, melhor dizendo.

Ele aprendera a difícil arte do Silêncio. Quisera um dia que Muitos aprendessem o que Poucos sabiam

(os Poucos, é preciso apresenta-los. Estes eram os que, como Ele, andavam de boa pelo Dia, sem ambições alheias ao riso ou sonho. Por isso, eram considerados loucos, por isso, talvez, Muitos chamavam-lhes assim, por preferência à rima aparentemente rica  - sempre são sadios os que cabem na melodia repetitiva dos refrãos, os Poucos que fiquem com a inconstância dos loucos. Já os Outros, que eram os que simpatizavam com todos, mas que não tinham coragem de improvisar caminhos tortos, chamavam-lhes, os Poucos, de Risonhos, por amor às junções ambíguas)

Era difícil seguir caminho claro de dentes e curvas, cheio de coisas novas que aprender. Era difícil saber-se ignorante a cada passo certo. Reconhecer-se outro a cada nota em falso. Era difícil escolher palavra que ficar...

Foi que assim, a cada som mais sutil, a cada odor mais subversivo, a cada vagar mais violento de entornos possíveis, que Ele se encantou da vida. Que se enamorou dela. Que a ouviu dizer cores lindas. E dela, ouviu dizerem coisas cheias de quebras, perigos de partituras escritas a lápis – coisas que Ele ouvia de olhos e dedos arregalados, cheios de pontas de julgar.

Têm sons que desbotam a flor. Têm sons que pesam, que não pulsam, e só pesam.

Ele também precisou ensinar Seus ouvidos a cuspir, a soltar fora de qualquer maneira, o mais rápido possível, aquele líquido pomposo urrado em coros pelas esquinas cheias de vozes que não enxergavam o que diziam, pois não ouviam o que olhavam.

Ontem, Ele sumiu. Disseram por aí umas três óperas de desarmonias que Ele cometeu.
Parece que deixou um recado, escrito a lápis, que eu transcrevo aqui para ver se um dia o escuto:

“Descobri o Silêncio de Hoje. Não volto ontem porque não tô, nem amanhã porque não fica. Sigo o bobo que me acorde.”